VEROSIMILHANÇA E ROMANCE HISTÓRICO

Oct 26, 2012

Quando eu andava na faculdade, um erro grave podia comprometer todo um exame. Bastava, por exemplo, dizer-se «corrector» em vez de «corretor», numa prova de direito comercial. (Como, aliás, se faz, alegremente em determinado filme português).

Talvez fosse demasiado drástico. Mas ficava claro que, em certos profissionais, há erros que não se toleram. Isto ocorreu-me quando, outro dia, por acaso, folheei numa livraria, na vasta e dominante secção de esterco que estava à entrada, um romance pretensamente histórico. Passava-se em certo período da nossa Idade-Média. Duas rapariguinhas da corte trocavam confidências em diálogos chapados de Enid Blyton. Quem escreveu aquilo não tinha a menor ideia de como eram a língua e as formas de tratamento no Português da época a que se abalançou. Ainda menos de quais eram as preocupações, os valores, as mentalidades, os usos, o fundo social e político. Não será porventura exigível (embora seja aconselhável) que a autora dum romance pretensamente histórico frequente o Orto do Sposo, ou o Boosco Deleitoso. Nem sequer, se calhar, umas crónicas de Fernão Lopes. Mas, que diabo, talvez um Vítor Hugo, um Herculano, um Saramago…

Também já vi o contrário: páginas e páginas de alguém (porventura um académico) manifestamente sobrecarregado de informação, mas sem a menor noção do que é a literatura, a ponto de embarcar em todas as banalidades, ingenuidades estilísticas e lugares-comuns (sem qualquer omissão) que já vêm dos tempos dos caracteres cuneiformes.

Basta ler-se dois parágrafos de livros assim para devolver o pó ao pó. Non legitur. Não vale a pena prosseguir. A arte é longa, mas a vida é curta.

Que tem isto a ver com a vexata quaestio da verosimilhança? Tudo, caríssimo leitor. Mas, sendo já tarde, aqui lhe peço que faça o papel de Xariar e que aguarde a próxima nota, para o mês que vem, prometendo eu (ameaçando?) voltar ao assunto.