A MARGEM MEIGA

Mar 21, 2014

Quando eu era criança morava numa rua em rampa chamada das Enfermeiras da Grande Guerra, num bairro que os nomes republicanos e maçónicos tutelavam com a sua respeitabilidade bigoduda e tesa.

Ao fundo, a rua dobrava à esquerda, para as profundas, e á direita para umas escadas largas que trepavam à Penha de França, cravadas de umas árvores indiferentes. Daí para baixo, era o Triângulo Vermelho. Nos primeiros degraus pasmava um chorão enorme, de ramagens pendendo, tristes, a sombrear melancolicamente um chafariz, já nessa altura em desuso.

Nesses tempos, eu corria viçosamente para cá e para lá, bairro acima e bairro abaixo, assistia, debruçado num muro, a treinos de pugilismo nas profundas de um saguão (dizia-se que Belarmino Fragoso treinava naquele rés-do-chão) e jogava partidas homéricas de hóquei em patins num pátio quadrejado, com um stique curto e mágico, magnificamente torneado. Marchava de manhã muito cedo para o Liceu de Gil Vicente, em madrugadas de névoa e frio, frieiras, frieiras, calçado molhado, primeiro pela Rua da Senhora da Glória, durante o primeiro ciclo, depois a roçar pelo tilintar nervoso dos eléctricos na Rua da Graça, que dela não tem apenas o nome, mas o estado. Foragido de aulas e vigilâncias, rapaziava, não raro, pelo castelo de S. Jorge, pelo Pátio de S. Fradique, por Alfamas e Mourarias, e cabriolava alegremente por Santa Clara e pelos abismos da Vale de Santo António. Como é que não me apercebia, admiro-me agora, de que a minha cidade era tão bela? Foi preciso crescer viajar, andar por capitais apessoadas, respirar outros ares, comparar atmosferas, dar muitos passos.

Mágico tem a mesma raiz latina de «meigo». Não é por acaso que na Galiza se chama às feiticeiras «meigueiras». «Venham bruxas, feiticeiras, meigueiras -- diz o ditado, que eu usei num livro qualquer -- mas não antes de eu contar as areias do mar». Podemos chamar à bela Lisboa («Lisbela» – cito-me eu de novo) uma cidade meiga? Não é despropositado, a certa luz do dia, de certo ângulo, quando ecoa suavemente um murmúrio de muitos séculos e quando nos encontramos propensos a idealizar.

«E ajuntou en sy as bondades do mar e da terra», diz-se algures, sobre Lisboa, na Crónica Geral de Espanha. «Terra de muytas e desvairadas gentes» chama-lhe Fernão Lopes, sendo que «desvairado» tem o sentido de «diversificado» e não o actual que ocorre imediatamente ao espírito. «Esta Lisboa prezada é mirá-la e leixá-la», cantavam as mulheres de uma Lisboa sitiada. «Cidade de Mármore e Granito», «Menina e Moça, Gaiata, de Chinela no Pé…» Inúmeros os poemas, as canções, o secular e variado («desvairado») louvor à cidade.

Em Lisboa até mesmo o nome é bonito e soa agradavelmente em várias línguas. LissabonLisbonneLisbon. Há sempre uma música, uma valsa a dois tempos, a três tempos…

Uma vez, durante uma visita que fiz, nos Estados Unidos, não digo exactamente onde, alguém me falou no ror de Lisbons que existem naquele país, e mostrou algumas imagens pioneiras. Não se tratava de uma homenagem a Portugal e aos portugueses, que a maior parte dos fundadores de cidades, na sua ingenuidade, nem conheciam, o que não os diferenciava muito dos americanos de hoje. Na verdade, apenas escolheram o nome Lisbon, porque lhes soava bem.

Oxalá a sonoridade lhes tenha sido benéfica e protectora. Mas ninguém lhes pode dar a luz, os azulejos, o branco das calçadas, a vida, a cor, o rumor, a espessura de tempo que ressalta a cada esquina. Nem a memória dum miúdo que corria em tempos pelo caminho de ronda de um velho castelo, trepava por um canhão de bronze com um grande rio ao fundo e um casario maravilhoso ao alcance.